A VIDA DE BOB DEAN - fragmento II



Fragmento II

Parte I

A varanda à meia luz é o retrato distante da festa que acabara. A casa antes, cheia de pessoas conversando e rindo, contrastava agora, com poucas luzes acesas, onde era possível ouvir até a cantoria dos grilos.

No cômodo da garagem, o silêncio é rompido pelas músicas do primeiro disco brasileiro em homenagem aos 25 anos da Rebelião de Stonewall em New York. Uma garrafa de vodka no fim e um copo com Hi-Fi pela metade, acompanham as músicas, na mão de Bob. Ele tenta decorar cada letra em inglês, enquanto tenta traduzí-las. Talvez seja este o momento preferido: Quando ele consegue ouvir a si próprio, enfeitiçar seus fantasmas, exorcizar seus medos e refletir sobre todos os sentimentos desconhecidos que o envolve.

Horas antes, Bob e um amigo ouviam rock sobre uma laje num desses finais de manhã que promete um dia escaldante sem nada pra fazer. Um telefonema mudou o plano de ambos para o feriado prolongado que iniciara. O convite para uma festa em outra cidade deram esperanças de que o feriado poderia ser bem melhor do que imaginaram. Juntaram algumas roupas e se encontraram na rodoviária da cidade, onde uma multidão se esbarravam, na pressa pra não perderem os ônibus que saiam a cada 30 minutos. Conseguir passagens naquele cenário parecia impossível, mas a baixa procura para a cidade que iriam o surpreenderam e o fizeram questionar se aquela idéia era realmente boa. Mas era tarde demais pra mudar, e o que poderia ser mais decepcionante do que passar horas e horas sobre aquela laje quente?

Bob, sentado à janela, ouvia Pink Floyd na avançada tecnologia do aparelho de walkman. Na mochila, uma dúzia de fitas K7, gravadas por ele mesmo. Compilações retiradas de LP´s próprios e de amigos, ou até mesmo gravações de rádio onde a vinheta da emissora era inserida, justamente, na melhor parte da música. Mas pouco importava. Bob olhava a estrada que atravessava seus olhos, as casas simples de lugarejos não encontrados em mapas e sentia uma doce sensação de liberdade. Olhava o horizonte e percebia que a vida poderia ser vivida de várias maneiras, mas as melhores, eram aquelas que ele mesmo escolhia, muitas destas ignorando conselhos e advertências. Bob vivia com a alma suas escolhas. Poderia caminhar sobre as nuvens e descer como um raio ao inferno sem se importar com quantas feridas a queda faria. Era uma obsessão involuntária enfrentar seus receios a fim de se aventurar pela vida, escrevendo com as próprias mãos sua história. “Melhor as consequências das falhas do que o medo das escolhas.” Dizia, didaticamente, sempre.

A festa pegou carona na noite e prometia não ter hora pra acabar. E foi em meio a embriaguez de alguns que Bob e seu amigo chegaram. Começaram tímidos e entre uma um gole e outro falavam sobre coisas da vida, conflitos da juventude, futuros incertos, certezas prováveis. Observavam as meninas e os casais que buscavam um canto mais reservado. Conheceu outras pessoas e quando o rock soou alto no som, Bob se libertou de vez. Criou sua própria roda de conversa e cantava todas as letras sem errar, inventando uma coreografia diferente, entre uma explicação e outra sobre as bandas. Contou piadas, falou sobre bandas que ninguém conhecia e entre um copo e outro dizia que queria ter uma banda de rock. Debochava da própria voz e da falta de habilidade com qualquer instrumento musical, mas era imbatível no solo de uma guitarra imaginária enquanto Stairway to Heaven explodia no volume máximo.

Sentindo o frescor da brisa fria da madrugada, uma garota em pé na varanda chamou sua atenção. Clara olhava para o céu como se estivesse sozinha no alto de uma montanha. Às vezes mexia os lábios interpretando algumas canções, olhava para as pessoas que se divertiam, sorria e voltava a contemplar as estrelas que as luzes de uma cidade grande consegue apagar. Bob a observava como se estivesse em frente a uma tela de Monet ou se sofresse os encantos de Mona Lisa que Da Vinci pintou. Entre todas as mágicas existentes, esta é a melhor: Quando um encanto inocente revela um sentimento puro e transforma qualquer mundo caótico em paraíso intocado. Ele poderia passar horas apenas olhando, mas os sentimentos que o envolve desejam mais.

“Sempre olho para o céu na esperança de ver uma estrela cadente.” Diz Bob ao se aproximar de Clara. “Mas não tive essa sorte ainda.” 

“São eventos raros,” comenta Clara. “Por isso alguns acreditam que possam ter um desejo realizado se o fizer, ao ver uma estrela cadente.”

“Me lembrarei disso quando ver uma.” Diz Bob. “Talvez uma estrela mude meu destino.”

“Talvez esteja querendo o que o destino não queira dar.” Sugere Clara se despedindo.

“Espere.” Diz Bob ao segurar em sua mão. “Talvez as estrelas não possam me dar o que elas não possam tocar.”

Clara sorri.

Bob está sob efeito de algo que nunca sentira, que desorganiza seus pensamentos e acelera seu coração. Ele fecha os olhos e, como uma fotografia, revive o sorriso que Clara deixou ao sair. Busca no céu respostas que não encontrará, mas entende que sentir tudo o que foi despertado é deliciosamente afrodisíaco e viciante.
(Em breve o capítulo II deste Fragmento)