Joumana Haddad: "Há outra mulher árabe, que luta por liberdade"

Joumana Haddad não é uma mulher comum. Libanesa, ela luta contra os clichês e estereótipos negativos que o Ocidente criou acerca da mulher árabe, mas jamais aceitou a opressão da cultura muçulmana. Para ela, que teve acesso aos autores mais proibidos do Islã desde criança – como Marquês de Sade, Balzac e Victor Hugo –, patriotismo é absurdo e ingênuo porque as pessoas nascem em um mesmo país por pura coincidência. Ela odeia a unanimidade, a "mentalidade de rebalho", mas acredita que ser diferente só por ser diferente é um folclore bobo. "Não preciso parecer um homem para ser uma mulher. E não preciso estar contra os homens para ser a favor das mulheres", escreve.

Poeta, tradutora e jornalista (é editora do jornal An-Nahar), Joumana criou a revista Jasad (que significa "corpo", em árabe), proibida em quase todos os países árabes. A publicação fala sobre os tabus relacionados ao corpo e à sexualidade, além de cultura, literatura erótica e ensaios fotográficos. Há cerca de dois meses, ela lançou no Brasil o livro Eu matei Sherazade (editora Record, R$ 29,90), no qual conta como se impôs e venceu num mundo opressivo e majoritariamente masculino, da cultura muçulmana. Para ela, "ser árabe é como dar murro em ponta de faca. E não é possível destruir essa faca com o que é de fora. A mudança não é um produto 'importável'", escreve. É por isso, então, que continua a morar no Líbano. Com uma linguagem engraçada e despretenciosa, ela fala sobre o impacto libertador da literatura em sua vida pessoal e intelectual. Joumana lê desde pequena, e também escreve desde pequena. O primeiro poema foi aos 12 anos. Aos 40 anos, publicou vários livros, inclusive de poesia erótica, quatro deles já traduzidos para o francês, italiano e espanhol. Confira a entrevista que esta árabe atrevida, que virá ao Brasil em novembro, para a Fliporto (Festa Literária Internacional de Pernambuco), concedeu a ÉPOCA.


ÉPOCA – Como é a vida da mulher árabe média, a mãe de família que não é subjugada pelo marido nem pela religião, e também a vida de quem luta, critica e tenta se libertar do Islamismo radical?
Joumana Haddad – Há muitos tipos de mulheres árabes que vivem diferentes vidas. Algumas são realmente oprimidas, enquanto outras se esforçam pela emancipação e lutam por uma vida melhor, para elas e outras mulheres. Obviamente, a primeira categoria representa a maioria, infelizmente. Mas isso não anula o fato de que há outra mulher árabe, e que ela está participando de uma luta magnífica. Ela merece a atenção do Ocidente, a fim de equilibrar todos os clichês e estereótipos negativos que existem no mundo sobre a mulher árabe.

ÉPOCA – Você diz que o patriotismo cega, que ele é a expressão de um romantismo ingênuo. Aqui no Brasil, muitas vezes somos acusados – pelo próprios brasileiros – de não sermos patrióticos, de valorizar demais o que é estrangeiro. Qual seria um meio termo positivo no meio desses dois extremos?
Joumana – Eu penso que nós nascemos em um mesmo país por pura coincidência. Nós nascemos sob uma religião em particular também por coincidência. Estas são identidades herdadas, nós não as escolhemos. Então é muito importante que nós as questionemos em um certo ponto de nossas vidas e decidamos por nós mesmos quem e o que queremos ser. Nesse sentido, eu acho que o patriotismo é ingênuo e absurdo. Eu prefiro amar, adotar e pertencer a todo o universo em vez de pertencer apenas a um lugar.

ÉPOCA – O que exatamente é publicado na Jasad? Textos e artigos culturais sobre o corpo em geral? Literatura erótica? Ensaios de foto?
Joumana – Tudo isso que você mencionou é publicado na Jasad, assim como reportagens sobre tabus relacionados ao corpo e à sexualidade nas sociedades e culturas árabes atuais, temas como virgindade, homossexualismo, poligamia etc.

ÉPOCA – Ao lançar a Jasad, em 2008, você disse que recebeu inúmeros emails e cartas com críticas pesadas (dizendo que você era imoral, pecadora, corrupta e corruptora, depravada, decadente, criminosa etc, e até que você deveria ser queimada com ácido...). Mas que essas críticas só serviram para te deixar invulnerável a elas. Que tipo de represália você sofre ou sofreu no meio intelectual e pelo poder político e religioso do Líbano?
Joumana – A resistência à Jasad é muito menor agora, porque ela se provou ser um fato, uma realidade que não por ser cancelada. Obviamente ainda há muitas pessoas que a consideram pecaminosa e imoral, e eu ainda recebo minha dose diária de insultos. Mas desde o começo eu decidi não ser intimidada por esses ataques, porque eu estava apaixonada pelo projeto, e convencida de que ele era necessário. Por outro lado, a revista tem um bom número de apoiadores, talvez não publicamente, porque as pessoas ainda têm medo das condenações sociais e religiosas. Mas muitas mulheres e homens me mandam emails de suporte todos os dias, me agradecendo por ter criado a revista. É daí que vem parte da minha força e perseverança.

ÉPOCA – Por que você acha que a Jasad não foi censurada no Líbano?
Joumana – A Jasad foi censurada em quase todos os países árabes que você possa imaginar, até o site da revista foi bloqueado em alguns países. Mas ela não foi censurada no Líbano por duas razões principais: primeiramente, o Líbano goza uma maior liberdade de expressão do que a maioria dos outros Estados árabes. E, segundo, eu tive a sorte de ter sido protegida pelos ministros da Informação e do Interior, intelectuais iluminados que acreditam nos direitos humanos e os defendem.

ÉPOCA – Você não quer deixar o Líbano, mas vive viajando. Qual é a sua relação com as culturas ocidentais e orientais e como usa isso em sua luta diária contra a condição da mulher árabe em seu país?
Joumana – Eu me considero uma cidadã do mundo no sentido literal da expressão. Eu pertenço a muitos lugares ao mesmo tempo, mas eu pertenço a mim mesma em primeiro lugar. Eu sou meu país e minhas raízes, então eu carrego o mundo comigo e dentro de mim onde quer que eu vá. Eu viajo porque eu estou sempre com sede de descobrir novas pessoas e culturas, e porque eu acredito que essa interação é o que dá verdadeiro sentido à vida. Eu não suporto pessoas que têm a cabeça fechada. Para mim, vida é uma série infinita de janelas abertas e horizontes sem fim. E, se eu estou no Líbano, não é por causa das coisas de que eu gosto, mas por causa das coisas de que eu não gosto e gostaria de contribuir para mudá-las.

ÉPOCA – A sua posição não é contra uma religião, mas contra o radicalismo criado por ela, que castra as liberdades e impõe comportamentos destrutivos...
Joumana – Sou realmente contra religião, e contra a doutrinação, a ideologia e o inevitável integralismo que ela carrega. Meu Deus é minha liberdade. Meu Deus sou eu mesma e as pessoas que amo. Eu sou muito espiritual, mas muito anti-religiosa, especialmente desde que eu me convenci que as três grandes religiões monoteístas não têm feito nada além de dividir as pessoas, e também são muito patriarcais e condescendentes com as mulheres.

ÉPOCA – Para terminar, deixe um recado para as mulheres brasileiras.
Joumana – Eu acredito que seria a mesma mensagem que eu sempre envio a mim mesma e às mulheres em todo o mundo: acredite em você, celebre sua força como mulher. Nunca diga: "Esse mundo é meu também, entregue-me". Em vez disso, "Esse mundo é meu, eu vou tomá-lo".

[FONTE: Revista Época]